quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A Noiva de Garibaldi II

A esta altura, as forças Farroupilhas estavam em desvantagem na Revolução.
De pouco e pouco tempo, era trocada de lugar a capital da República, que a cada dia entrava em mais decadência.
Garibaldi agora tinha uma família, composta por ele, Anita, e o filho que ela esperava este nascido em 1840, na vila de São Simão, atual Mostardas.
O pequeno rebento do casal foi nomeado como Menotti.
Agora, mais do que nunca Garibaldi e Anita estavam unidos, por um filho. Uma família.
Francisco Pedro de Abreu, o Chico Moringue, tinha sede de vingança de Garibaldi, desde o ataque das forças deste ao estaleiro dos Farroupilhas, situados na Estância da Barra, no qual Chico Pedro foi atingido por um tiro disparado por Garibaldi, tendo este lhe comprometido os movimentos do braço atingido. O plano do oficial Imperial era de acabar com a pequena família do corsário italiano.
Anita ainda se recuperava do parto do filho quando o acampamento foi atacado e muitos dos soldados que acompanhavam os mesmos foram mortos no ataque de surpresa. Garibaldi estava longe dali, recrutando peões das estâncias da região para juntarem-se as tropas farroupilhas, quando foi feito o ataque. Foi nesse episódio que aconteceu um dos momentos mais lembrados da coragem de Anita, que ainda sobre fortes dores, amarrou um lenço em seu peito, enrolou seu filho, recém-nascido, montou a cavalo e fugiu pela mata que circundava o acampamento farroupilha, conseguindo salvar a sua vida e de seu filho Menotti.
Ao chegar no local onde era o acampamento Garibaldi se desesperou ao não encontrar sua amada e seu filho. Porém alguns soldados que haviam sobrevivido lhe explicaram que ela havia fugido a cavalo com seu filho.
Longe dali, na Estância da Barra, Manuela ainda nutria a esperança da volta de Garibaldi, mesmo sabendo de Anita. Então numa visita de Joaquim, este já incomodado com a insistência de sua prima em esperar Garibaldi, revela a ela que Anita teve um filho com Garibaldi. A primeira reação da moça é de desolamento ao receber esta notícia.
Manoela  só tinha aos seus diários um companheiro para dividir suas tristezas, uma vez que Mariana havia ido morar com Dona Antônia, após sua mãe renegar seu filho com João Gutierrez.
Após Garibaldi ter atravessado a fronteira do Brasil com o Uruguai, para Manuela tanto fazia a qual rumo a Revolução tomava. Seu coração estava encharcado pelo amor que sentia por aquele homem que o roubara e que agora ia embora para nunca mais voltar.
O fim da Revolução se dera em 1845, com o Tratado de Ponche Verde.
Manuela e o que havia restado de sua família voltaram para Pelotas, agora pacificada após o fim da Revolução. Pouco se sabe sobre a vida dela após o fim da Farroupilha. Seguem abaixo anotações em seus diários:
“Pelotas, inverno de 1876.
Volto às minhas páginas; sempre volto. Às vezes, penso em esquecê-las para sempre, remediando-me à condição de velha solteirona que sou, mas creio já que este vício é cousa impossível, e que vai morrer dentro de mim. Quem sabe um dia abrirão minha cova para encontrar os restos do meu cadáver a escrever garatujas invisíveis.
Ah, sei que estou mui tétrica hoje... Há um cheiro de morte no ar. Aqui no Rio Grande, aprendemos a farejá-lo desde sempre, e não o imagine ruim, fedorento, cheiro de carniça. Oh, não! O cheiro de morte, de morte verdadeira de quem ainda não morreu mas que se vai em breve, ah, esse cheiro é doce feito flor velha. É um olor assim nauseabundo, deveras açucarado, que se vai entrando pelas narinas da gente até fazer fundo lá nas carnes, até dar enjôo.
Por isso, fechei as janelas. Para deixar o cheiro lá fora.
Hoje recebi uma carta dando conta de que Inácia, filha de Perpétua, está mui adoentada. Pensei em escrever ao Matias lá na Corte, mas falta-me coragem de chamá-lo ao passado assim à queima-roupa. É por isso que estou aqui, defronte a este caderno.
Se não escrevo a Matias, escrevo aqui. Mas é preciso escrever alguma cousa.
Da última vez que aqui estive, eu contava de Maria Angélica e seus amores. Creio que escrevi de José, que, se não era assim belo, tinha lá os seus brios, e andava a fazer a corte à filha do general. Eram primos numa família em que os primos casavam entre si, o que é grande sorte.
Tudo isso era no fim daquele ano de 1848...
Andava a sombra da guerra a flanar sobre as cabeças dos rio-grandenses, e Moringue (aquele perverso cabeçudo que um dia quase matou meu Giuseppe, mas que por ele foi ferido, ah, e sentiu, o detestável, o gosto do seu próprio sangue); sim, o velho Moringue andava aprontando das suas, atacando estâncias de uruguaios, sob a desculpa de que esses eram inimigos dos brasileiros da fronteira. Ia lá o governo blanco praticando das suas contra brasileiros residentes no Uruguai, e os ataques do tal Chico Pedro, o Moringue, só fizeram apoquentar ainda mais os ânimos. Naquele tempo, a cidade de Montevidéu, cidade que durante tantos anos acolhera meu Giuseppe, vivia um cerco prolongado. Dizia-se que era um sofrimento. E o governo brasileiro resolveu interceder na situação - o Império temia mesmo era uma nova revolta do Rio Grande para que nos uníssemos aos colorados; mas foi cousa fácil dizer que todo o país ia lutar contra os blancos, que eram aliados do argentino Rosas. Rosas, o grande fantasma daqueles anos. Tão temível, tão temido; deveras não passou de um tolo, que na última hora se safou com as calças na mão para Londres.
Creio que foi por esse tempo que Joaquim conheceu Josefina Azambuja, cujo pai, um comerciante, fazia negócios com sua família. A moça deve ter-se enamorado de Joaquim, que era mui galante e tinha grande fama de ser imune aos laços do casamento, por culpa - meu Deus -, por culpa minha! Pois o que é do gosto regala a vida: a tal Josefina deu-se de amar aquele hombre tristonho, bonito, tão dedicado à família, e tanto fez que ambos se casaram alguns anos depois, tendo vencido um longo noivado.
Também naquele tempo foi que Maria Angélica aceitou unir-se em bodas com o primo; aquele velho amor, recordável apenas sob as cobertas da cama, cicatrizara. Foi então que, aqui neste quarto, me pus a costurar o meu vestido de noiva. Havia tantos casamentos na família! Nada mais justo que eu, pobrezita, preparasse as minhas bodas, mesmo com o suposto noivo ausente, carregando pela Europa uma penca de filhos e uma tropa de soldados.
Mandei comprar cetim branco e pus-me então a costurar o mais demorado vestido que jamais se fez nesta terra. Eu era a Penélope esperando Ulisses, e a cada dia dava um ponto ou dois no meu trabalho. Ficou bom, certamente. Levou mais de dois anos para estar feito como eu queria. Ainda hoje, vinte e seis anos después, ainda o uso todas as noites.
Lembro de uma certa tarde em que eu estava a fazer nele um bordado e alguém tocou à porta. Era minha mãe. Andava já muito doente dos pulmões, e triste, posto que seu filho mais amado, o único varão que suas carnes lhe deram, estava para casar e ir viver no campo.
- Me disseram que vosmecê comprou seda branca. É para quê?
Ninguém jamais há de imaginá-la parada à porta, com seu rosto encovado, os olhos duros, a mirar-me com desgosto.
- É para um vestido - eu lhe disse.
- Para o casamento de Antônio?
- Não, para o meu mesmo.
Ela não se deu ao trabalho de pronunciar aquele nome que lhe era tão odioso. O nome de Giuseppe. Apenas sorriu com escárnio:
- Vosmecê está louca. A segunda das minhas filhas. Louca, louca. Isto só pode ser uma punição.
E saiu para o corredor batendo as botinas no chão.
É verdade, madre, a senhora teve duas filhas loucas, uma outra que morreu moça e um varão que morreu na Guerra do Paraguai. Não foi realmente um desfecho digno dos seus sonhos.
Aqui, quase me desconcentro! A criada faz barulho lá embaixo, trancando as portas da casa. Mas que ladrão haverá de entrar neste velho sobrado sem riquezas? Levar-me-ão quais jóias, que dinheiros? Mas não vou descer os dez degraus até a sala, não vou me erguer da cadeira. Há de ter os seus divertimentos, a pobre criada. Este pequeno caderninho é o meu...
Bueno, onde eu estava mesmo? Eram os idos de 1850, e o menino Matias crescia vigorosamente, a ponto de D. Antônia mandar trazer de Porto Alegre um professor que lhe ensinasse as cousas da vida. D. Antônia queria ver o menino virar doutor. Queria-o longe do destino desta terra de homens que morrem cedo; queria-o na estância, talvez com um consultório na cidade. E pôs o menino a estudar.
Vi-o uma vez naquele tempo. Acabava de sair do escritório, caminhava atrás do professor, pois tinham terminado uma lição de álgebra. Vinha sorrindo, lépido. Custava-lhe ficar duas horas numa cadeira, a mente pousada nas páginas do caderno; ele queria o pampa, queria o Rio Camaquã, queria o estaleiro. Eu estava lá para ver D. Antônia. Quando Matias me olhou, abriu um sorriso:
- Manuela!
E atirou-se nos meus braços. Era um bichinho. Era um boneco morno e macio. Por um momento, eu quis ter um filho. Mas o gosto se perdeu no instante seguinte - não se pode retroceder nos caminhos desta vida.
Inácio morreu em dezembro de 1850. Lembro-me dele. Era um homem forte. Morreu num sopro, como uma vela que se apaga. Jamais se queixara de dores, mas certa noite, no meio de uma madrugada quente, soltou um único grito, e enquanto Perpétua tratava de acender uma luz, ele desaparecia para sempre deste mundo, deixando a mulher sozinha na vida, com as quatro filhas pequenas por criar.
Perpétua não estava preparada para a morte do esposo - nem todas as mulheres desta estirpe são de pedra. Algumas vergam-se. Rosário, Mariana, Perpétua... Perpétua quase se deixou ir, mas buscou em si alguma força, tinha aquelas quatro raparigas na barra da sua saia, e después de longos dias de apatia e choro, fez as malas, deixou o Salso e as lembranças para trás e foi com suas crias viver uns meses com Caetana, lá no Cristal. Creio haver sido isso que a salvou, este voltar-se para fora, para o mundo, fugindo de afogar-se nos seus próprios rios interiores.
Desfiado o ano de 1850 (quão pouco há para se dizer da vida, enfim!, tudo, tudo, morte e alegria, resume-se numas poucas linhas num caderno...), chego à nebulosa guerra contra o ditador Rosas, que desembestou a acontecer lá pelos idos de 51.
Contaram naquele tempo que o general Antônio Netto voltara ao Rio Grande para arregimentar homens para a sua Brigada de Voluntários Rio-grandenses, e com ele partiram Bentinho, Leão, Marco Antônio e Caetano. Joaquim deixou-se ficar, noivando placidamente: estava cansado de guerras, de sangue e de desilusões políticas. Os outros filhos hombres de Caetana botaram o pé no mundo, promovendo outra vez o altar cheio de velas, e a viúva do general ajoelhada em frente à santa, a rezar, a rezar.
A luta sucedeu fora das fronteiras do Rio Grande, mas por aqui havia muito medo do tal Rosas. A guerra é uma doença que deixa cicatrizes; voltaram as igrejas a botar fiéis pelo ladrão, era só Deus a segurar o tal demônio argentino que, diziam, planejava invadir o Rio Grande. Foi uma alegria quando correu a notícia de que Urquiza, governador de Entre-Rios, se unira aos brasileiros na luta contra Rosas.
Lembro pouco daquela guerra de conversas de comadres - por aqui não sucedia nada, e os jornais traziam nota de que Caxias marchava para destruir o perigoso ditador. Foi uma guerra que só fez vento, segundo a definição de D. Antônia.

Enquanto os hombres iam outra vez para a peleja, passava a vida por estas lonjuras. Antônio, meu irmão, casou e foi-se embora para sempre (bendita seja a sua sabedoria de abandonar este teto maldito); um mês depois, minha mãe morreu de um mal pulmonar. Vinha já muito malita, nem dizia mais seus venenos contra mim, ficava somente na cama, à espera das visitas do médico e dos cuidados da criada.”

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