Pelotas, primavera de 1902.
A luz do Sol, nem ao menos adentrou pelas janelas do
sobrado hoje.
Choveu incessantemente, desde manhã. Grossas gotas
de chuva, que poderiam lavar-me a alma. Mas não, as gotas nem se quer perto de
mim chegaram.
Para mim foi um dia igual ao outros todos. Trancada
dentro do quarto, se fazer mais que existir.
Por única novidade, diário, vos conto que ontem a
primavera voltou ao Rio Grande. Ah primavera! Com suas auroras perfumadas ao
jasmim e o bem-me-quer! Ah se ao menos eu pudesse voltar ao campo e encher meus
pulmões com o perfume das flores silvestres.
Por pouco não me distraio, com estes meus anseios,
que perante minha condição física, se fazem impossíveis. Coisas que as pessoas
que moram por ai, não dão importância, mas que eu, velha e sem forças daria um
dos poucos dias desta minha vida, que me restam para poder sair por ai e
apreciar.
O campo, a estância, as lembranças que lá guardam.
Os seus fantasmas de épocas passadas, que rondam a casa grande. Não foi uma
época feliz aquela, havia guerra. Havia a derrama de sangue pelo Pampa. Eu tive
que ficar trancafiada naquela casa, junto das outras. Foram dez anos, que para
mim, por vezes passavam num piscar de olhos. Noutros, depois do amargor da
desilusão, foram se arrastando, e arrastando, até os dias de hoje. Virei um
fantasma, que vaga por este quarto, arrastando correntes pesadas, batendo
grilhões do tempo.
Bueno. Isso ficou num passado distante. Junto das
doces lembranças do meu amor. Junto de minha juventude. De todas as moças da
família, eu uma das mais velhas, sou a única ainda viva. Viva? Viva ou encarcerada
neste quarto, que mais parece um mausoléu? Poderia eu, ter me casado com aquele
primo com que minha mãe tanto queria. Sim, guardado dentro de mim aquele amor e
ter feito como todas as outras, seguido os moldes que os nossos pais queriam.
Ter me casado, por casar afirmo, ter sido uma esposa que nem as outras todas,
ser mãe, cuidar do lar, e esperar meu marido voltar das revoluções e guerras,
volta e meia assolavam a Província. Poderia. Mas não o fiz. Fiquei solteirona.
Quando a Revolução terminou em 1845, tive de deixar a estância e voltar para
Pelotas. Minha mãe me martirizou e olhou-me com desgosto até o fim de seus
dias. Ela teve apenas a mim de filha que ficou solteirona. Os meus irmãos e
minhas irmãs fizeram a vontade de meus pais, consorciaram-se com cônjuges de
escolha deles. Moças e rapazes de famílias de boa índole e de terra de baixo da
sola dos pés.
Meu pai era mais flexível que minha mãe. Sabia que
seus filhos tinham sentimentos. E sempre perguntava á nos se era também de
nosso gosto se casar com quem era a nos escolhido. Isso fazia com que minha mãe
dissesse que ele nos dava ousadia demais. Ou como ela mesma falava “Vosmecês
não tem de querer, tem é de casar com quem os mais velhos decidissem.” E assim era. E ficou pior depois que só o cavalo
de meu pai voltou da Revolução, lá pelos idos de 1843. Coube a ela cuidar de
nosso encaminhamento na vida. De mim e das outras duas filhas e um filho que
ainda não tinham se casado. E uma filha sua, membro de uma das famílias mais
tradicionais, era algo impensável de sair pelo mundo com um aventureiro, sem
eira nem beira. Fiquei dias trancafiados no quarto até que ela julgasse que
havia passado aquela insanidade.
Na verdade essa “insanidade”, nunca passou. Ainda
espero, e só deixarei de esperar a volta de meu amado, no dia que meu coração
parar de bater. Isso, talvez se dê, por essa primavera, ou talvez no verão,
outono e até mesmo no amargo inverno. Nunca sabemos quando iremos partir deste
mundo de gente sofredora e má. Nunca. Ainda sou insana, madre...
Bueno. Después o verão é uma estação calorosa, porém
a mim tanto faz. E logo volta o outono. E por fim o inverno.
Sempre foi assim
sempre será um dia após o outro. Não importa se estamos felizes ou reduzidos a
pó. Eles sempre se renovam. Sempre...
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