A esta altura, as forças Farroupilhas estavam em
desvantagem na Revolução.
De pouco e pouco tempo,
era trocada de lugar a capital da República, que a cada dia entrava em mais
decadência.
Garibaldi agora tinha
uma família, composta por ele, Anita, e o filho que ela esperava este nascido
em 1840, na vila de São Simão, atual Mostardas.
O pequeno rebento do casal foi nomeado como Menotti.
Agora, mais do que
nunca Garibaldi e Anita estavam unidos, por um filho. Uma família.
Francisco Pedro de Abreu, o Chico Moringue, tinha
sede de vingança de Garibaldi, desde o ataque das forças deste ao estaleiro dos
Farroupilhas, situados na Estância da Barra, no qual Chico Pedro foi atingido
por um tiro disparado por Garibaldi, tendo este lhe comprometido os movimentos do
braço atingido. O plano do oficial Imperial era de acabar com a pequena família
do corsário italiano.
Anita ainda se
recuperava do parto do filho quando o acampamento foi atacado e muitos dos
soldados que acompanhavam os mesmos foram mortos no ataque de surpresa.
Garibaldi estava longe dali, recrutando peões das estâncias da região para
juntarem-se as tropas farroupilhas, quando foi feito o ataque. Foi nesse
episódio que aconteceu um dos momentos mais lembrados da coragem de Anita, que
ainda sobre fortes dores, amarrou um lenço em seu peito, enrolou seu filho,
recém-nascido, montou a cavalo e fugiu pela mata que circundava o acampamento
farroupilha, conseguindo salvar a sua vida e de seu filho Menotti.
Ao chegar no local onde
era o acampamento Garibaldi se desesperou ao não encontrar sua amada e seu
filho. Porém alguns soldados que haviam sobrevivido lhe explicaram que ela
havia fugido a cavalo com seu filho.
Longe dali, na Estância
da Barra, Manuela ainda nutria a esperança da volta de Garibaldi, mesmo sabendo
de Anita. Então numa visita de Joaquim, este já incomodado com a insistência de
sua prima em esperar Garibaldi, revela a ela que Anita teve um filho com
Garibaldi. A primeira reação da moça é de desolamento ao receber esta notícia.
Manoela só tinha aos seus diários um companheiro para
dividir suas tristezas, uma vez que Mariana havia ido morar com Dona Antônia,
após sua mãe renegar seu filho com João Gutierrez.
Após Garibaldi ter
atravessado a fronteira do Brasil com o Uruguai, para Manuela tanto fazia a
qual rumo a Revolução tomava. Seu coração estava encharcado pelo amor que
sentia por aquele homem que o roubara e que agora ia embora para nunca mais
voltar.
O fim da Revolução se
dera em 1845, com o Tratado de Ponche Verde.
Manuela e o que havia
restado de sua família voltaram para Pelotas, agora pacificada após o fim da
Revolução. Pouco se sabe sobre a vida dela após o fim da Farroupilha. Seguem
abaixo anotações em seus diários:
“Pelotas,
inverno de 1876.
Volto
às minhas páginas; sempre volto. Às vezes, penso em esquecê-las para sempre,
remediando-me à condição de velha solteirona que sou, mas creio já que este
vício é cousa impossível, e que vai morrer dentro de mim. Quem sabe um dia
abrirão minha cova para encontrar os restos do meu cadáver a escrever garatujas
invisíveis.
Ah,
sei que estou mui tétrica hoje... Há um cheiro de morte no ar. Aqui no Rio
Grande, aprendemos a farejá-lo desde sempre, e não o imagine ruim, fedorento, cheiro
de carniça. Oh, não! O cheiro de morte, de morte verdadeira de quem ainda não
morreu mas que se vai em breve, ah, esse cheiro é doce feito flor velha. É um
olor assim nauseabundo, deveras açucarado, que se vai entrando pelas narinas da
gente até fazer fundo lá nas carnes, até dar enjôo.
Por
isso, fechei as janelas. Para deixar o cheiro lá fora.
Hoje
recebi uma carta dando conta de que Inácia, filha de Perpétua, está mui
adoentada. Pensei em escrever ao Matias lá na Corte, mas falta-me coragem de
chamá-lo ao passado assim à queima-roupa. É por isso que estou aqui, defronte a
este caderno.
Se
não escrevo a Matias, escrevo aqui. Mas é preciso escrever alguma cousa.
Da
última vez que aqui estive, eu contava de Maria Angélica e seus amores. Creio
que escrevi de José, que, se não era assim belo, tinha lá os seus brios, e
andava a fazer a corte à filha do general. Eram primos numa família em que os
primos casavam entre si, o que é grande sorte.
Tudo
isso era no fim daquele ano de 1848...
Andava
a sombra da guerra a flanar sobre as cabeças dos rio-grandenses, e Moringue
(aquele perverso cabeçudo que um dia quase matou meu Giuseppe, mas que por ele
foi ferido, ah, e sentiu, o detestável, o gosto do seu próprio sangue); sim, o
velho Moringue andava aprontando das suas, atacando estâncias de uruguaios, sob
a desculpa de que esses eram inimigos dos brasileiros da fronteira. Ia lá o
governo blanco praticando das suas contra brasileiros residentes no Uruguai, e
os ataques do tal Chico Pedro, o Moringue, só fizeram apoquentar ainda mais os
ânimos. Naquele tempo, a cidade de Montevidéu, cidade que durante tantos anos
acolhera meu Giuseppe, vivia um cerco prolongado. Dizia-se que era um
sofrimento. E o governo brasileiro resolveu interceder na situação - o Império temia
mesmo era uma nova revolta do Rio Grande para que nos uníssemos aos colorados;
mas foi cousa fácil dizer que todo o país ia lutar contra os blancos, que eram
aliados do argentino Rosas. Rosas, o grande fantasma daqueles anos. Tão
temível, tão temido; deveras não passou de um tolo, que na última hora se safou
com as calças na mão para Londres.
Creio
que foi por esse tempo que Joaquim conheceu Josefina Azambuja, cujo pai, um
comerciante, fazia negócios com sua família. A moça deve ter-se enamorado de
Joaquim, que era mui galante e tinha grande fama de ser imune aos laços do
casamento, por culpa - meu Deus -, por culpa minha! Pois o que é do gosto
regala a vida: a tal Josefina deu-se de amar aquele hombre tristonho, bonito,
tão dedicado à família, e tanto fez que ambos se casaram alguns anos depois,
tendo vencido um longo noivado.
Também
naquele tempo foi que Maria Angélica aceitou unir-se em bodas com o primo;
aquele velho amor, recordável apenas sob as cobertas da cama, cicatrizara. Foi
então que, aqui neste quarto, me pus a costurar o meu vestido de noiva. Havia
tantos casamentos na família! Nada mais justo que eu, pobrezita, preparasse as
minhas bodas, mesmo com o suposto noivo ausente, carregando pela Europa uma
penca de filhos e uma tropa de soldados.
Mandei
comprar cetim branco e pus-me então a costurar o mais demorado vestido que
jamais se fez nesta terra. Eu era a Penélope esperando Ulisses, e a cada dia
dava um ponto ou dois no meu trabalho. Ficou bom, certamente. Levou mais de
dois anos para estar feito como eu queria. Ainda hoje, vinte e seis anos
después, ainda o uso todas as noites.
Lembro
de uma certa tarde em que eu estava a fazer nele um bordado e alguém tocou à
porta. Era minha mãe. Andava já muito doente dos pulmões, e triste, posto que
seu filho mais amado, o único varão que suas carnes lhe deram, estava para
casar e ir viver no campo.
-
Me disseram que vosmecê comprou seda branca. É para quê?
Ninguém
jamais há de imaginá-la parada à porta, com seu rosto encovado, os olhos duros,
a mirar-me com desgosto.
-
É para um vestido - eu lhe disse.
-
Para o casamento de Antônio?
-
Não, para o meu mesmo.
Ela
não se deu ao trabalho de pronunciar aquele nome que lhe era tão odioso. O nome
de Giuseppe. Apenas sorriu com escárnio:
-
Vosmecê está louca. A segunda das minhas filhas. Louca, louca. Isto só pode ser
uma punição.
E
saiu para o corredor batendo as botinas no chão.
É
verdade, madre, a senhora teve duas filhas loucas, uma outra que morreu moça e
um varão que morreu na Guerra do Paraguai. Não foi realmente um desfecho digno
dos seus sonhos.
Aqui,
quase me desconcentro! A criada faz barulho lá embaixo, trancando as portas da
casa. Mas que ladrão haverá de entrar neste velho sobrado sem riquezas?
Levar-me-ão quais jóias, que dinheiros? Mas não vou descer os dez degraus até a
sala, não vou me erguer da cadeira. Há de ter os seus divertimentos, a pobre
criada. Este pequeno caderninho é o meu...
Bueno,
onde eu estava mesmo? Eram os idos de 1850, e o menino Matias crescia
vigorosamente, a ponto de D. Antônia mandar trazer de Porto Alegre um professor
que lhe ensinasse as cousas da vida. D. Antônia queria ver o menino virar
doutor. Queria-o longe do destino desta terra de homens que morrem cedo;
queria-o na estância, talvez com um consultório na cidade. E pôs o menino a
estudar.
Vi-o
uma vez naquele tempo. Acabava de sair do escritório, caminhava atrás do
professor, pois tinham terminado uma lição de álgebra. Vinha sorrindo, lépido.
Custava-lhe ficar duas horas numa cadeira, a mente pousada nas páginas do
caderno; ele queria o pampa, queria o Rio Camaquã, queria o estaleiro. Eu
estava lá para ver D. Antônia. Quando Matias me olhou, abriu um sorriso:
-
Manuela!
E
atirou-se nos meus braços. Era um bichinho. Era um boneco morno e macio. Por um
momento, eu quis ter um filho. Mas o gosto se perdeu no instante seguinte - não
se pode retroceder nos caminhos desta vida.
Inácio
morreu em dezembro de 1850. Lembro-me dele. Era um homem forte. Morreu num
sopro, como uma vela que se apaga. Jamais se queixara de dores, mas certa
noite, no meio de uma madrugada quente, soltou um único grito, e enquanto
Perpétua tratava de acender uma luz, ele desaparecia para sempre deste mundo,
deixando a mulher sozinha na vida, com as quatro filhas pequenas por criar.
Perpétua
não estava preparada para a morte do esposo - nem todas as mulheres desta
estirpe são de pedra. Algumas vergam-se. Rosário, Mariana, Perpétua... Perpétua
quase se deixou ir, mas buscou em si alguma força, tinha aquelas quatro
raparigas na barra da sua saia, e después de longos dias de apatia e choro, fez
as malas, deixou o Salso e as lembranças para trás e foi com suas crias viver
uns meses com Caetana, lá no Cristal. Creio haver sido isso que a salvou, este
voltar-se para fora, para o mundo, fugindo de afogar-se nos seus próprios rios
interiores.
Desfiado
o ano de 1850 (quão pouco há para se dizer da vida, enfim!, tudo, tudo, morte e
alegria, resume-se numas poucas linhas num caderno...), chego à nebulosa guerra
contra o ditador Rosas, que desembestou a acontecer lá pelos idos de 51.
Contaram
naquele tempo que o general Antônio Netto voltara ao Rio Grande para
arregimentar homens para a sua Brigada de Voluntários Rio-grandenses, e com ele
partiram Bentinho, Leão, Marco Antônio e Caetano. Joaquim deixou-se ficar,
noivando placidamente: estava cansado de guerras, de sangue e de desilusões
políticas. Os outros filhos hombres de Caetana botaram o pé no mundo,
promovendo outra vez o altar cheio de velas, e a viúva do general ajoelhada em
frente à santa, a rezar, a rezar.
A
luta sucedeu fora das fronteiras do Rio Grande, mas por aqui havia muito medo
do tal Rosas. A guerra é uma doença que deixa cicatrizes; voltaram as igrejas a
botar fiéis pelo ladrão, era só Deus a segurar o tal demônio argentino que,
diziam, planejava invadir o Rio Grande. Foi uma alegria quando correu a notícia
de que Urquiza, governador de Entre-Rios, se unira aos brasileiros na luta
contra Rosas.
Lembro
pouco daquela guerra de conversas de comadres - por aqui não sucedia nada, e os
jornais traziam nota de que Caxias marchava para destruir o perigoso ditador.
Foi uma guerra que só fez vento, segundo a definição de D. Antônia.
Enquanto
os hombres iam outra vez para a peleja, passava a vida por estas lonjuras.
Antônio, meu irmão, casou e foi-se embora para sempre (bendita seja a sua
sabedoria de abandonar este teto maldito); um mês depois, minha mãe morreu de
um mal pulmonar. Vinha já muito malita, nem dizia mais seus venenos contra mim,
ficava somente na cama, à espera das visitas do médico e dos cuidados da
criada.”
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