Sentei-me próximo dela. Buscava, sim, buscava em sua
fisionomia algum detalhe que não me fizesse bem aos meus olhos. Tinha em seu
olhar ainda a ingenuidade de uma criança, que pouco sabe da vida. Seu perfume
era de flores silvestres, que adoravelmente viajava pelo ar, enfeitiçando-me.
Naqueles dias que haviam sucedido, este que vos lhes conto,
fazia falta a paz em mim. Nada me alegrava nada me completava. Desde que me
mudei para a capital, não havia me identificado com nenhuma outra pessoa. Eram
todos diferentes de mim. Seus passos, olhares, modos, nada era como os dos meus
conterrâneos, nem como os meus.
Fazia dois meses que havia vindo morar em Porto Alegre, por
que em minha cidade não havia faculdade de medicina. Meus pais se preocupavam
com os meus estudos, e não queriam que tivesse o triste destino de permanecer
na pequena Vila de Piratini.
Corriam os primeiros anos do século XX, várias mudanças
ocorriam pelo mundo afora, e aqui no Rio Grande do Sul não era diferente. No lugar de velhas carroças, surgiam os
primeiros carros, poucos, mas já estavam em circulação nas poucas ruas já
pavimentadas da capital. Existiam postes, abastecidos com óleo de sardinha, que
iluminavam as ruas da cidade, até pouco depois da meia-noite.
Morava numa pequena pensão situada numa rua adjacente
próxima da Rua da Praia, onde passava quase todo dia estudando e dando o melhor
de mim, para que quando mandasse uma carta aos meus pais, pudesse lhe reportar
alegria e lhes dar o orgulho de ter seu único filho formado, como médico. Se
desse sorte, podia ir medicar em minha terra natal. Só imaginava minha velha
mãe, orgulhosa de seu filho, lendo a luz de vela minha carta.
Mas isso levaria tempo.
Não podia me dar ao deleite de apaixonar-me por a filha do
banqueiro, isso podia me atrapalhar em meus estudos.
Todos os dias quando saia da pensão, pondo-me a caminho da
faculdade, a via saindo de casa, sempre acompanhada de seu irmão mais velho.
Não deixava que percebesse que eu a admirava, e, quase pechava nas senhoras que
ia a missa pela manhã. Uma vez que era órfã de mãe, sempre acompanhava seu
irmão no trabalho deste no banco da família. Por certo, achava cansativo passar
o dia todo solitária no sobrado da família, e seu pai preferia ter sua bela caçula sob seu rigoroso olhar. Ficava o dia
todo junto de seu pai, em sua sala, no banco.
Seus longos cabelos castanhos claros eram levemente atados
por uma delicada fita de cetim, de cor azul claro. Eram os mais belos de todas
as moças da capital, e quiçá do universo. Pelo menos para mim eram. Longos,
eram singelamente embalados pela leve brisa do ar matinal que soprava do
Guaíba. Suas pequenas mãos delicadas eram cobertas por luvas brancas, que
apertavam uma pequena bolsinha que sempre carregava consigo. Vestia-se sempre
com belíssimos vestidos, sempre feitos dos mais caros e valiosos tecidos, que
seu pai mandava fazer com a modista francesa que tinha uma loja na Rua dos
Andradas.
Em meus mais íntimos pensamentos, despia-a em meu
subconsciente, e projetava tal formosura, onipotentemente superior á uma das
três graças acompanhantes da Primavera, obra do pintor renascentista Botticelli.
Mas podia ele criar figura tão divina quanto aquela que alimentava meus olhos
todas as manhãs?
Docemente dei-lhe o doce apelido de “A Graça da Rua XIV”.
Seguiam os dois de braços dados, misturando-se nas pessoas
que perambulavam pela rua, em frente a sua casa. Logo sumiam num esquina a
seguir.
Voltei a mim, aqui nesta confeitaria, da Rua do Porto, onde
eu e meus colegas de faculdade saímos para o almoço. Ela estava acompanhada de
seu pai, que não tirava os olhos de seu jornal. A filha, a bela filha, estava a
beber um chá de canela, numa delicada xícara de porcelana turca, que soltava
para cima um vapor, este que sumia no ar, depois de subir-lhe pela maçã do
rosto.
Comia o almoço, mas não conseguia retirar o olhar da bela
moça, e ali a poucos metros, respirava seu doce perfume, que absorvia pelas
minhas narinas.
Meus colegas, já haviam notado minhas intenções com a moça,
e como eu sabiam que meu desejo a se realizar, seriam um tanto impossível.
Tinha medo que ela percebesse e comentasse com seu pai ou
irmão, e estes ficassem com raiva de mim, por cobiçar a jovem. Deveria ser
prometida a algum herdeiro de alguma abastada família da região. Já eu não
detinha este status nem posição social que nem os demais rapazes que faziam a
corte a ela.
Seu pai, ao notar o garçom da confeitaria estava ali de pé
ao seu lado para fazer o pedido, disse que desejava o mesmo de sempre para
almoçar e perguntou a sua filha o que ela desejava para comer. Ela chamava-se
Luciana, soube seu nome assim que seu progenitor lhe perguntou sobre o almoço. Ela concordou com o pai, em almoçar o de sempre. Assim, de seus carnudos lábios saiu uma doce voz, calma como água de um cristalino lago e mais suave que um Adágio de Mozart
ou Albinoni, dedilhados num novíssimo piano de puro marfim.
Logo após o pedido dela, ainda como os olhos presos em sua
figura, percebi que ela me olhava. Sim, ela me olhava, discretamente olhava-me
no fundo dos meus olhos, como quem procurava desvendar minha alma...
Talvez por medo que seu pai desconfiasse disso e lhe
advertisse, baixou os olhos num rápido movimento e pôs seu belo par de olhos
azuis na toalha da mesa. Docemente pôs o guardanapo no colo e manteve-se com o
olhar baixo na mesa.
Resolvi não lhe olhar demasiadamente, pois fiquei com receio
de constrangê-la, e decidi deter meu olhar apenas na minha refeição que já
estava findando.
Quando me dei por conta, após terminar meu almoço, a mesa
onde seu pai e ele estavam apostos, fazia-se vazia.
Não perguntei a nenhum dos meus colegas sobre onde ela havia
ido.
Terminamos o almoço. Todos contavam anedotas, causos que
ocorriam fora das vidraças da confeitaria e além dos limites da cidade,
assuntos que eram comumente debatidos pelos jovens da capital. Mas a mim se
faziam desinteressantes e obsoletos, uma vez que a imagem da senhorita não
abandonava minha imaginação. Ah perturbadora visão dos céus! Era como se
aqueles poucos minutos em que a olhava e deleitava-me com seu perfume,
pudessem-me fazer flutuar, envolto em delicada seda divina!
Resolvi arrancar esta imagem de minha cabeça, pois tinha
outros assuntos a tratar referentes a faculdade.
Pois assim fiz, de todas as maneiras me afastei de seu
caminho. Nunca mais passei em frente a sua casa, nunca mais almocei naquela
confeitaria, e quando sua majestosa imagem me vinha tona em pensamento, tratava
de me esbofetear para cair em mim e me ocupar com outros pensamentos.
E consegui.
Sua imagem, aos poucos fora desaparecendo dentro de mim,
como alguma forma em uma manhã de cerração, ao passo que vai se afastando, mais
difícil de divulgar torna-se.
Ainda hoje, anos depois destes fatos, vez que outra me
pergunto: - Por onde andará a bela Luciana, a minha, só minha Graça da Rua XIV?
Nota: Caso você tenha
notado, a história acima ficou um tanto sem pé nem cabeça, nem o título se torna
convincente, e muito menos o fim. Apenas deixei minha fértil imaginação criar
este texto. E.V;
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